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Contos-->Uma Mulher Decente -- 17/12/1999 - 12:22 (Dioclécio Luz) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Caros amigos.

Angelita Maria da Conceição Martinez Rodrigues morreu aos 65 anos, feia e rabugenta, mas uma santa, cercada dos inumeráveis amigos e algumas dezenas de inimigos e, ainda, e principal-mente, das honrarias e reconhecimento do Governo, com toda sua malta de puxa-sacos, bandidos e ladrões, políticos, jornalistas e putas.
Morreu com a augusta e nobre sensação — percebíamos no seu rosto pálido coberto das pelancas e das crateras que o passar dos anos foi-lhe deixando como mordidas da morte a avisar de sua chegada — nobre sensação, dizia, de ter cumprido sua missão. Dedicou a vetusta dama nada menos que 55 anos de sua esplendorosa vida ao dever patriótico de colocar no seu devido lugar histórico (e por que não dizer, orgânico? E por que não dizer, cósmico?), no pedestal, o herói da pátria, aquele que é vulgarmente conhecido como "Arranca Den-tes", exatamente por suas virtudes e sapiência no lidar com o boticão e os trastes alquími-cos, manipulando o chumbo e o ouro, eliminando as cáries fedo-rentas, os cacos de molares e pré-molares, num debate hediondo com a língua e o cuspe alheio, isto quando não promovia a aben-çoada e retumbante revolução que se não tirou o povo brasileiro da miséria pelo menos teve o mérito de fazê-lo conhe-cido no mundo inteiro e, quiçá, Deus é grande, como dizem os muçulma-nos, em outras galáxias.
A dama em foco, agora morta e bem morta, mas para sempre viva em fama e galhardia e honra para nossa garbosa nação, ava-liza sua progenitora, dedicou toda sua vida, toda uma vida, a de-monstrar a importância e dimensão do vulto histórico do Arranca Dentes. De modo que a este que voz fala, amigos e parentes da vitimada senhora e também meus, recai dúvida atroz: sobre qual das duas personagens devo atribuir maiores encômios de coragem e determinação e sapiência? À mulher que desde os nove anos de idade, e até antes, meni-nota impúbere, ao desfilar no 7 de se-tembro dando vivas ao nosso valoroso exército e aos competentes governantes, tirando do fundo d alma o impulso patriótico e res-peitoso diante daqueles que sustentam a ordem e o progresso nesta nação do futuro?... Ou a Joaquim João da Silva Xavier, o Arranca Dentes, que de infância pobre materialmente tornou-se recompensado pela glória de ser herói no futuro?... Permitam-me um parêntesis rápido, como um tocar de pálpebras. O fato demonstra que a miséria nos ensina a ser nobre — e os exemplos estão nestas duas pessoas: Angelita e Arranca Dentes.
Angelita Martinez — que Deus guarde com cuidado sua santa alma — fez o primário, o colegial e os estudos normais, habilitando-se ao magistério, no nosso glorioso Colégio da Imacu-lada Conceição, administrado com competência pelas irmãs benediti-nas; com amor e carinho, dentro da disciplina e da ética, como elas o sabem fazer, pródigas que são neste lide. Sabemos nós, os mais antigos, que a menina Angelita sempre foi de boa índole na escola, não negando a tradição da família Rodrigues em nossa deliciosa cidade, não incor-rendo, portanto, nos erros e vicissitu-des e aleivosias típicas da juven-tude, com seus desre-gramentos morais, os primeiros esbaldamentos da carne, tão em moda nos nossos dias e já embrionário naqueles idos de antanho.
Nosso município, entretanto, em que pese o avanço intelec-tual dos mestres dos colégios e de espaços culturais, como o Clube Recreativo e Literário 14 de Setembro, do qual com justo orgulho faço parte como sócio-fundador, não foi suficiente para conter a extraor-dinária inteligência de Angelita. Ela tinha um ex-traordinário fervor pelo estudo religioso, frustando-se quase sempre à distração, aos fol-guedos típicos da juventude — mesmo os castos e disciplinados como convém às jovens castas e de boa família da nossa municipalidade — para se dedicar à devoção de Nossa Senhora das Dores, por quem tinha zelo e adoração, facilmente notados nas missas, novenas, procissões e outras ritualísticas da Santa Madre Igreja Católica Apostólica Romana, quando se retirava do meio das pessoas, e não por ser feia de cara, ou, gorducha, principalmente nas partes do corpo mais apre-ciadas pelos homens, mas por ser católica e íntegra, para entre-gar-se, e por favor não maliciem minhas palavras, a Nosso Senhor Jesus Cristo.
O fato é, contava antes de enveredar, tocado pela empolga-ção, pelos pormenores, o fato é que Angelita deixou nossa cidade. E lembro até hoje da reunião festiva ofertada por seus pais, Dr. Olegário e Da. Ema, aos amigos e parentes em despedida da no-bre donzela — um estado de pureza precisamente avaliado e rati-ficado por sua mãe diante de outras senhoras da sociedade para que ninguém duvi-dasse do zelo da família para com as questões de pudor e moral. Foi Angelita morar na megalópole do Rio de Janeiro, em casa de uma tia solteira, como convém à moça distinta, virgem e pura, delicada e inteligente, mesmo sabendo nós que inteligência em mulher é adereço supérfluo; conta mais, muito mais, os modos da dama compor-tar-se diante do homem que ser mais ou menos inteligente. Aliás, a nossa tradição cristã e o método cartesiano nos ensinam que as mulheres se dão melhor com pouca inteligência. No caso de Angelita, como já frisamos, sendo ela carente de atributos chamativos ao varão, recebeu de Deus recursos de trato e compostura, moral e obedi-ência, e, de quebra, esta inteligência por todos nós conhecida. Era feia, feia como um sapo, e tinha um corpo hipopotámico, mas, senhoras, cavalheiros, tinha a graça de uma dama. Angelita jamais manifes-tou um peido diante de estranhos.
No Rio de Janeiro Angelita formou-se em História do Brasil com láurea, embora não tenhamos uma prova oficiosa; e, de qualquer modo, de que nos vale um papel reles embricado por um reles guarda-livros da capital? É a pessoa de Angelita, exemplo fiel de, se permitem a redundância expelida com efeito poético, exemplo fiel de fidelidade as tradições, à história deste país.
Que os meus amigos não me tomem por um vândalo das le-tras, um Bakunin nesta hora, entorpecido pela emoção, ao regis-trar aqui o fato incontestável de que a história não seria a mes-ma, nossos heróis não teriam o lugar de honra em que estão hoje, não fosse a dedicação desta grande e esplendorosa mulher. O Brasil se acabaria, feneceria, sucumbiria inapelavelmente, pois não tería-mos uma história, não teríamos heróis. Nosso auriverde pendão da esperança não teria estre-las reluzentes, porque elas expressam não só os estados mas, princi-palmente, o fulgor daqueles que deram a vida pelo nosso país, man-chando com sangue esta terra, exatamente para que o lábaro estrelado existisse e seus filhos não fugissem à luta quando convocados.
Lembro-me muito bem do dia em que, à luz mortiça do crepúsculo, Angelita aportou em nossa cidade, en passant, em gozo de fé-rias, feia como sempre, porque sua beleza era interior — como uma imensa galinha lastrada por ovos dourados — , sua luz era no coração, na cabeça. E ela contou-me sua alvissareira inten-ção de retirar do limbo aquele personagem da história, forçoso reconhecer, o maior herói da pátria, o Arranca Dentes, também um feioso mas evidentemente um gênio e homem de coragem inaudita.
Em prol da pátria esta mulher de iluminada inteligência afastou-se das núpcias, ajustando matrimônio sim, a esta causa patriótica maior: a necessidade de colocar o Arranca Dentes em seu devido lugar. Norteada por este ideal fez o mestra-do e depois o Philosophe Doctor, coisa que poucos em nossa ci-dade sabem o que é, e que pelo menos nos próximos cem anos outro daqui não conseguirá fazer, adotando à tese o nome pomposo de "Arranca Dentes e o Brasil — Orgulho nacional, o primeiro herói do mundo a desenvolver uma proposta libertária a partir de ideais nativistas". Conseguindo, isto sabemo-lo bem, aprovação unânime da banca examinadora, famosa por sua crueldade e rigor, uma vez que formada pelos mais magnâ-nimos mestres de história do nosso país, uma boa parte integrante da nossa mui amada e querida Academia Brasileira de Letras, onde se assentam os imortais, homens dados a transcender a vida, caminhar no Olimpo entre seus pares, Zeus, Thor e Mercúrio, na ocasião se-lecionando com vigor aqueles que se pretendiam um título de doutor na centenária Universidade das Minas Gerais, instituição que se dedica à formação de jovens inteligentes e unicamente voltados à causa brasileira.
A tese da doutora, minha querida amiga, conterrânea, agora falecida sobre esta mesa, inerte, a desfazer-se comida pelos vermes e bactérias que sustentam, invisíveis, este mundo, tratou de persona-gem que nos é cara por ser exemplo de dignidade e, repito, patriotismo. Que os raros jovens aqui presentes, trazidos à força a este velório pelos mais velhos, estes que dormem e estes outros que tiram melecas verdejantes de seus narizes pantanosos, mirem-se no exemplo do nosso herói, um homem totalmente tomado pela causa da liberdade da nossa nação. A tese da minha amada amiga veio bem a propósito porque nos tempos em que fez seu trabalho, e mesmo em alguns nichos dos dias de hoje, alimen-tada evidentemente por uma caterva de comunistóides, apanigua-dos do ouro moscovita, que anda mudando de face mas não fe-nece enquanto idéia hedionda, e através da bisonha imprensa marrom deste estado, uma batela de pasquins infames, enfim, houve e há uma campanha difamatória contra nosso amado Arranca Dentes.
Com estes olhos meus li — não esquecerei jamais — artigo assinado por um pretenso historiador, homem dado a fulgurantes manifestações de inteligência eqüina, um contador de lorotas, evidentemente, e evidentemente sem uma milionésima da gramatura da inteligência de Angelita, uma doutora legitimada em banca universitária, ungida pelos meios acadêmicos e intelectuais de nosso país. No tal artiguzinho o famigerado pseudo-jornalista expelia acusações contra o herói da pátria, num sacrilégio infame contra nossa história. Dizia o desgraçado, se me permitem os ou-vintes esta elucubração sobre oje-rizas e infâmias, que o nosso amado Arranca Dentes era feioso — como se tal firula estética sublimasse sua beleza moral e espiritual, sua devoção à causa da liberdade. Dizia o pestilento que ele havia sido preterido, ele que era um valoroso alferes de nossa Guarda Nacional, por uma donzela, filha de oficial de graduação superior. Na sua insanidade o articulista calunia não só o herói, mas, obviamente todo país, ao afirmar que Arranca Dentes tomara estas duas frustrações — ser feioso e preterido por dama filha de oficial — para fazer guerra à Portugal.
Na sua estulta forma de vociferar contra o herói, o execrável senhor vem afirmar que ele seria um louco ou abestalhado — considerem a insanidade da colocação — por debater o assunto em tabernas, abertamente, sem melindres. Isto, no dizer do cronista, caracterizaria a precariedade da revolução; seria ela movida unicamente à conver-sas de botequim por um bando de poetas irres-ponsáveis. O pusilâ-nime autor deste artigo, e permitam-me reservar seu nome para que a chacota não caia sobre sua família, que certamente não merece san-gue tão ruim entre os seus, não foi capaz de perceber a coragem do Arranca Dentes em promover uma revolução às escâncaras, sem mascaramentos, sem temor. E agora cito um trecho da tese da minha amada Angelita Martinez: "Arranca Dentes fez assim porque da própria coragem era feita sua alma e materializado seu corpo". Juntou-se a poetas, sim, porque sendo ele homem de poucas posses culturais, embora sai-bamos ter escrito posteriormente, iluminado pelo heroísmo, uma dezena de livros na prisão, infelizmente destruídos por seus irados captores, sendo homem de arguta sensibilidade, quis versejar sobre seus planos de combate e os modos de derrocada da monarquia, adotando a simétrica, numa versão única no continente americano de um bardo, um menestrel revolucionário, vislumbrando a marcha triunfal do povo brasileiro sobre os castelos, numa epopéia tupiniquim, entoando uma versão brasileira da Marselhesa.
Sou um homem realizado na vida porque Deus deu-me a honra maior de poder ler os manuscritos da tese de Angelita Mar-tinez antes de se tornar livro de cabeceira de todos aqueles que apreciam os va-lores nacionais: o conceito de moral, de liberdade com segurança, a crença em Deus e na Igreja Católica Apostólica Romana. A obra divina de Angelita exibe em forma de parágra-fos, acentos agudos e circunflexos, vírgulas, pontos e pontos e vírgulas, os cinco anos dedicados à sua elaboração. Razão porque sinto-me competente — ainda mais aqui e agora que o defunto de Angelita começa a exalar o aroma de carne podre característico dos mortos — para responder as bravatas dos energúmenos, como as deste lascivo e suposto jornalista.
Os Autos do inquérito, desenvolvido após a prisão dos revolucionários e nos quais teria se baseado esse vil escriba, foi provado cientificamente, tem neles instalados a insidiosa marca dos acusadores, numa abjeta alteração dos fatos, não sendo, portanto, objeto que mereça respeito ou sirva de referência para uma real avaliação da verdade histórica. Observemos que a rebelião ocorreria com a participação de 250 homens da região; mais 800 da cidade vizinha já estavam alertados e seriam acionados por telégrafo, do mesmo modo que um total de 34 mil e 746 homens no estado iriam participar deste movimento libertário. Todos, muito bem armados, sairiam de Ouro Preto, rumariam em campanha para tomar de assalto o Palácio Imperial no Rio de Janeiro. A revolução, portanto, não se resumiria à iluminada inteligência e braveza de Joaquim João da Silva Xavier e aos quatro poetas que, diga-se de passagem, seus versos foram e são até hoje con-siderados primorosos, devido ao lirismo e amorosidade da obra que deixaram. Não faltariam armas aos confidentes revolucionários, eles estavam aparelhados, treinados para lidar com os bacamartes e poderosos canhões de combate.
Foi um elemento de fora quem levou o movimento à bancarrota. E Angelita sempre emudecia os lábios, digo, os olhos, ao rememorar para mim o surgimento de um traidor entre os patrio-tas, um bandido. O biltre, lutando em causa própria e em defesa da monarquia, visava, como destaca a tese de Angelita, uma re-forma agrária no país, o que nos remete a possibilidade de já ter-mos nessa época infiltração comunista no Brasil, e desta vez man-comunada com a monarquia. Delatou a todos. Judas mineiro.
Cumpre destacar nesta ocasião fúnebre — e os Autos não ousaram extirpar ou adulterar — nesta ocasião imorredoura, a postura correta e digna do líder dos 3 mil 358 envolvidos na rebelião, o Ar-ranca Dentes. Num repente de heroísmo e coragem, ao ser interrogado se se arrependia do ato, repetindo as palavras do Papa Alexandre VI, com o corpo marcado pela tortura e as vestes em farrapos, declarou diante dos infames Torquemadas: "Senhores, 3 mil 358 vidas eu tivesse, 3 mil 358 vidas eu daria pela minha pátria". A frase ficou gravada para sempre no coração e mente de todos. É sabido que mesmo os juizes, cruéis por natureza, acostumados a dilacerar corpos, extirpar dedos, peles, narizes e orelhas, genitais, à base do alicate, queimar homens e mulheres como quem frita um toicinho, até estes tiveram um assomo de espanto diante da coragem do Ar-ranca Dentes. Suas palavras foram mais abrasivas que o ferro de marcar usado por eles nas pobres vítimas. Testemunhas revelaram que alguns destes duros homens não contiveram as lágrimas, reco-nhecendo a fibra de Arranca Dentes. Diante destes inquisidores, seres luciferianos, o Arranca Dentes oferecia sua vida, o pouco que ainda restava, tanto estava alque-brada pelas marcas do cárcere, um corpo sujo, queimado, ras-gado, cagado e mijado, em troca das vidas dos seus companheiros de rebelião. Os Autos do inquérito registram que ele repetiu ainda, lúcido, as palavras de Cristo para Pilatos: "O que é a ver-dade? Quem sabe? Eu sou o caminho a verdade e a vida; senhores, perdoai-vos, eles não sabiam o que faziam". Os impiedosos juízes, para felicidade dos outros rebeldes — e há a calúnia de que os outros prisioneiros teriam feito uma grande farra nesta noite — acabaram aceitando a permuta, decidindo pela morte de Arranca Dentes e a libertação dos seus companheiros.
Meus amigos, permitam-me encerrar este laudatório à dama aqui morta, enaltecendo sua grande força moral. A pujante moralidade de Angelita sempre caminhou pari passo com sua inteligência. Eis que morou numa das cidades mais promíscuas deste país e nem por isso arredou um milímetro de seu pudor. É sabido que nas festas carnavalescas a cidade é tomada pelos humores do demônio, num avassalador exercício de — se me perdoam as damas aqui presentes, mas esta é a palavra que convém — um exercício de putaria. A mais exacerbada putaria de que se tem notícia no globo, com as mulheres, evidentemente as de pouco louvor doméstico, entregando-se à prática da luxúria e da motela-ria, quando não à manifestação pública de suas partes pudentas, para gozo e deleite dos homens. Mas enquanto o rito do carnaval se sucedia nas avenidas e nos clubes de pouca moral, Angelita se metia em retiro espiritual, casta, virginal, dedicando aqueles momentos em que a população era dominada pela carne para se elevar mais ainda em espírito.
Ah, como era grande a alma de Angelita. Só uma pessoa de tão elevada estatura espiritual para não se deixar levar pelos vícios e pra-zeres mundanos vulgarizados no Rio de Janeiro. Sabe-mos que já é muita a safadeza que impera nas praias e mesmo nos ca-barés, onde habitam as mariposas, mulheres da vida fácil, mas e o que não acontece nas casas ditas privadas, nas boates onde circula a droga fácil e o desvio de garotas para a raparigagem? Sim, nes-tes antros há práticas que certamente abominam a nossa casta e zelosa sociedade mas que lá são considerados comuns. Um exemplo desta libidinagem, desta safadagem ritualizada corriquei-ramente, é o banho de champanhe. Não ouçam o que digo, moci-nhas, senhor pároco, senhoras damas locais, queridas visitantes, senhores pais. Descrevo a lubricidade para que saibam, inocentes habitantes da nossa cidade, damas ainda intactas em seu regaço vaginal, cavalheiros, homens sábios, saibam como se manifesta o instinto bestial habitante dos corações masculinos. No banho de champanhe o companheiro da mulher cai-lhe em cima, como um cão vulgar, a lamber-lhe a pele, bebendo sobre o corpo aquele líquido vertido, num exemplo aterrorizante de sodomismo e, obviamente, falta de higiene. Felizmente na nossa sadia sociedade local não se conhece exemplo da prática de semelhante hedonismo vulgar.
Angelita Martinez transcendeu a tudo isto. Foi muito além em seu brilho de mulher casta e inteligente. Poucas santas do panteão católico, tiveram os pendores desta mulher.
Por isto não causa assombro ter recebido de suas mãos, um pouco antes delas enrijecerem para sempre, um documento registrado no cartório do meu amigo Alcebíades Valença, onde revela seu úl-timo pedido. Este capricho, um singelo pedido, humilde para quem teria direito à glória maior uma heroína deste quilate, é o pedido de uma dama que feneceu como uma rosa; talvez um dos poucos praze-res a que não se abasteceu em vida e pretende saborear na morte. Eis que o destino benfazejo encarregou-me de trazer-lhes, ainda sob o calor gélido e ectoplasmático da morta aqui ainda fresca nos seus fedores e apodreceres; se assim for possível se referir a um defunto tão ilustre. É a solicitação última de quem dedicou sua vida, seu corpo, insisto, jamais tocado por mãos humanas masculinas mas uni-camente pelos dedos e peitos e coxas e outras coisas mais daquele a quem devotou sua alma, Jesus Cristo, e à missão sagrada de revelar a pátria o seu maior herói.
Portanto, é com o coração açodado e estarrecido pela honra de estar aqui nesta tertúlia funesta, neste momento em que percebo sob as pálpebras já corroídas pelos vermes na sagrada missão de devorar os olhos de uma santa o olhar cálido da defunta sobre mim, que anuncio o último pedido desta portentosa dama, o qual, já adianto, demonstro absoluto interesse em satisfazê-lo. Meus amigos, garbosas damas, senhorinhas, destemidos senhores, Angelita solicita que seu corpo e o que restou dele, agora que apodrece sob nossas vistas e ao calor das velas, e mesmo embalado pelo cochilar blasfemoso de alguns poucos aqui presentes, para exaltação do seu nome e sua obra, tenha ele o mesmo destino dado aquele que foi objeto de admiração em toda sua longa e dedicada vida.
Como foi feito ao Arranca Dentes, devemos destrinchar seu corpo em vários pedaços, salgá-los e distribuí-los nos postes das ruas e praças de nossa cidade. Para que todos conheçam a grande mulher que foi. E só depois que os urubus, auxiliados pelo traba-lho dos vermes locais, conhecidos pelo portentoso apetite, da-rem cabo das pernas e braços e coxas e peitos e cabeça, dispersos como estandartes de sangue e heroísmo pela cidade, só então os daqui, os que não co-nheceram esta mulher, buscarão nas escolas, e com os mais antigos, porque assim o queremos, mais informações sobre Angelita Martinez. E saberão de sua obra, da imensa moral que ejaculou diante da vida, do resgate que fez à memória do Arranca Dentes, de como a feiúra de Angelita foi tão grande quanto sua inteligência, de como o país, o planeta e, quiçá outras galáxias, souberam de seu nome e o reverenciam e o reverenciarão até o final dos tempos. E, quem sabe os urubus, também eles filhos da natureza e portanto obra divina, ao comerem da carne de Angelita Maria da Conceição Martinez Rodrigues, revelem-se iluminados, seja transmutados em psitacídeos, tor-nando-se verde, vermelho e amarelo o que antes era negror, e saiam pelo mundo, em bandos tagarelas, pregando o bom nome de Angelita e a coragem do Arranca Dentes.
Muito obrigado.

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Do livro inédito, "BOTIJAS"
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